sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Capítulo 3 - Lembranças do Passado (Cont.)

Eu não recordei exatamente daqueles rapazes em si, mas de fato lembrei que aquelas vestimentas que ambos usavam eram típicas dos servos de Heliópolis, por isso eu deduzi que eles pertenciam ao meu antigo reino. A minha dúvida era a ligação entre aquele vilarejo e Heliópolis, mas como já estava tarde e eu, tal como Luíz, estava cansado por causa da festa de casamento, resolvi esperar até o outro dia para tentar compreender melhor este fato, quando os meus pensamentos estariam mais claros.
Porém, no outro dia a minha outra preocupação prevaleceu: eu disse a Bernardo que faltaria ao trabalho somente mais aquele dia e retornaria no dia seguinte às minhas funções no pasto. Assim, enquanto ele estava fora, eu pedi que Luíz finalmente me contasse a história de Bernardo com Estevão. Então, como ele havia me prometido no dia anterior, ele contou:

- Felipe, vou tentar ser o mais claro e sucinto possível! Há cerca de um ano atrás o Bernardo estava namorando com um rapaz chamado Estevão, que foi o primeiro e único amor da vida do meu irmão, antes de você é claro. Porém, certa vez, quando estava no centro da cidade passeando com o Henrique, eu ouvi alguns rumores que não julguei de fato verdadeiros, embora os tenha contado a Bernardo por precaução. Estes rumores referiam que Estevão estaria se encontrando com uma mulher da cidade, todas as tardes, no mesmo horário. Dessa forma, foi relativamente fácil para ele averiguar o fato, que infelizmente se revelou verdade.
- Então o Bernardo foi traído por esse tal sujeito?
- Infelizmente sim! Mas o mais preocupante foi o estado em que meu irmão ficou depois de descobrir este fato: primeiro ele teve um acesso de raiva muito intenso e agrediu o Estevão, o que o levou a ser preso, porém, graças a Deus ele foi solto alguns dias depois sob pena de prestar serviços não-remunerado para a cidade. Depois disso, ele entrou em um estado de profunda tristeza, a tal ponto que quase não falou nada durante alguns meses, embora tenha continuado trabalhando normalmente.
- Nossa, eu não fazia ideia! Eu não imagino o Bernardo agredindo ninguém!
- Mas isso realmente não é algo que o meu irmão fazia ou faria novamente! Foi algo totalmente isolado e incomum, por isso que ele foi solto alguns dias depois! As pessoas da cidade o conhecem há muito tempo e sabem que isso não é típico dele!
- Claro! Na verdade o que eu sempre admirei no Bernardo é o fato de ele ter porte físico para se sair mais do que bem em uma luta, mas ainda assim sempre mostrar o seu lado mais gentil em tudo o que ele faz! Mas e esse tal Estevão? Ainda vive aqui?
- Não, porque além de ter irritado o Bernardo, esse sujeito também enfureceu o marido da mulher com quem ele estava tendo um caso. Então, segundo comentários que eu ouvi sobre o assunto, ele teve que fugir mais do que depressa da cidade levando em sua companhia a tal mulher, pois o marido dela jurou que se encontrasse os dois, mataria a ambos e a si mesmo!
- Nossa! e nunca mais se ouviu falar dele?
- Não que eu saiba!
- Muito obrigado Luíz! eu estava aflito pra saber qual o papel desse sujeito na vida de Bernardo e pelo que vejo não foi nada positivo.
- Nem um pouco Felipe! Na verdade ele fez muito bem ao Bernardo logo no início, pois o meu irmão sempre foi muito fechado desde quando ele era um garoto e nós conseguíamos ver a felicidade no rosto dele enquanto eles estavam juntos. Isso durou quatro anos Felipe e, no geral, durante todo esse tempo fez muito bem a ele, que passou a ser mais aberto e espontâneo, embora no final ele tenha deixado, simbolicamente, uma ferida que ainda está cicatrizando no coração do meu irmão.
- E nesse período depois do término ele não se envolveu com mais ninguém?
- Não! e não foi por falta de pretendentes, porque o meu irmão sempre foi cobiçado tanto pelos rapazes como pelas moças desta cidade! Mas lá no fundo ele não queria, não precisava e não estava preparado pra se relacionar com mais ninguém! Bem...no dia em que você apareceu algo mudou e nós percebemos isso de pronto quando ele entrou por aquela porta naquele dia. Por isso eu fui tão direto em te sensibilizar para a possibilidade dele gostar de você!
- E eu te agradeço imensamente por isso! Bem, acho que eu já tomei muito do teu tempo, afinal hoje é o teu primeiro dia de casado, certo? Muito obrigado novamente por dispor do teu tempo pra me contar essa história!
- Não se preocupe com isso! Pode sempre contar comigo Felipe!

O Luíz se tornou meu melhor amigo e confidente naquela casa, em muitos aspectos até mais que Bernardo, pois eu sempre recorria a ele em momentos de insegurança ou dúvida e ele sempre se fazia disponível pra acolher as minhas demandas.
Quando Bernardo chegou em casa, nós jantamos todos juntos, como de costume, porém, depois disso Luíz pediu que ele conversasse a sós com o irmão, então eu me dirigi para o meu quarto e fiquei esperando por Bernardo. Após algum tempo, eu percebi uma elevação no tom das vozes então saí para averiguar e, quando me dirigia para a sala, esbarrei com Bernardo no corredor, que estava bastante alterado.

- Bernardo...o que aconteceu?
- Acho melhor nos irmos para o quarto!!

Eu nunca tinha visto Bernardo daquele jeito, então, quando chegamos no quarto, eu prontamente o questionei novamente sobre o motivo da exaltação.

- O que está acontecendo Bernardo? Era você quem estava gritando?
- Felipe...o Luíz veio conversar comigo há pouco e me disse que lhe contou sobre o Estevão...
- Sim, é verdade! Mas eu o pedi que me contasse, ele não fez isso por maldade!
- ELE...ele não tinha o direito de te contar algo que eu não queria que você soubesse sobre a minha vida! e você não deveria ter ido pedir a ele que lhe contasse se sabia que eu não queria lhe contar a respeito!
- Mas eu só queria...
- Felipe, eu te amo muito, mas eu estou imensamente desapontado e entristecido. Eu me excedi ainda há pouco com o Luíz e pedirei desculpa a ele amanhã, mas não quero fazer o mesmo com você, então eu peço que compreenda que eu prefiro dormir no meu antigo quarto essa noite.

Ao ver Bernardo deixar o nosso quarto naquela noite eu fiquei muito triste, tanto que chorei antes de dormir. As minha intenções eram as melhores quando eu incentivei o Luíz a me contar aquela história e nunca imaginei que isso deixaria Bernardo tão furioso.
No outro dia, durante o café da manhã, ele de fato pediu desculpa a Luíz, assim como a todos da família, pelo modo como havia se excedido. Porém, eu senti que ele ainda não havia me perdoado por ter agido pelas suas costas e isso me deixou visivelmente mais introspectivo.
Quando partirmos em direção ao pasto, como eu tinha me comprometido no dia anterior, eu não consegui começar nenhuma conversa com ele, não por raiva ou mágoa, mas por medo de que ela ainda estivesse triste comigo. Para minha surpresa, quando estávamos no meio do caminho, ele fez sinal para que parássemos, então, em um só movimento, ele caminhou até mim, me segurou em seus braços e me beijou. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele disse:

- Desculpa...desculpa...eu não sei o que aconteceu comigo ontem! Você é tão especial pra mim e eu te tratei muito mal! Mas é que eu passei tanto tempo triste pelo que aconteceu com o Estevão que eu desenvolvi um sentimento negativo em relação a esse fato, além disso, a possibilidade de você me ver como alguém fraco que foi traído e agiu de uma maneira tão vergonhosa me deixou com tanto medo que eu fiquei confuso e acabei maltratando as pessoas que eu gosto. Eu só precisava ficar sozinho pra me acalmar e me reorganizar emocionalmente! Você me perdoa?
- Mas é claro! Na verdade sou eu quem precisa pedir desculpas, pois só estava tentando entender um pouco mais sobre você e não me preocupei em pensar se isso te deixaria triste, tal como deixou. Além disso, eu realmente fiz tudo isso pelas suas costas e reconheço agora que uma relação deve ser aberta, então me desculpe por isso e eu prometo que não vai se repetir!
- Graças e a Deus que eu não te machuquei a ponto de te perder. Felipe, você foi realmente a minha salvação! Eu preciso te contar essa história do meu ponto de vista, pois tem detalhes que o Luíz desconhece.
- Se você não se importar em chegar mais tarde ao pasto eu não adoraria ouvir.
- Não se preocupe com isso, vai ficar tudo sob controle até a nossa chegada.
- Então me conte a sua história com o Estevão.
- Bem, como o Luíz deve ter te contado eu estava muito apaixonado por este rapaz de nome Estevão e, inclusive, eu planejava me casar com ele. Nós namoramos por cerca de quatro anos e, há cerca de um ano atrás, eu o pedi em casamento, porém, exatamente dois dias após o pedido o meu irmão me contou alguns boatos que circulavam pela cidade, os quais você já sabe. A parte mais triste e vergonhosa disso é que naquele dia eu agi de um modo que eu nunca imaginara ser capaz e que quase me custou a vida, pois, se naquele acesso de raiva eu tivesse matada algum dos dois traidores, eu teria sido sentenciado ao enforcamento, já que este vilarejo é muito severo com homicidas.
- Eu não saiba desses detalhes! Mas ainda bem que você não fez isso e que este vilarejo conhece a sua índole.
- Realmente! Mas isso apenas salvou a minha vida de ser exterminada pelas mãos da sociedade e não da dor e do remorso que me assolaram durante todo o tempo que se seguiu após esse acontecimento. As lembranças dos momentos bons que eu vivi com ele em contraste com o patife que eu flagrei tendo relações sexuais com aquela mulher me levaram a um estado de profunda apatia, pois eu não conseguia ter vontade de comer ou dormir, simplesmente e mecanicamente saia para trabalhar e fazer as minhas tarefas, mas somente porque isso me fazia sentir algo: cansaço e dor pelo esforço físico. A vergonha por ter agido de forma tão descontrolada também me fez ficar nesse estado.

Nesse momento, eu vi algo que ainda não tinha presenciado em relação a Bernardo, ele estava chorando e se jogou no meu colo. Eu prontamente o acolhi e não disse nada até que ele estivesse pronto para falar novamente, apenas o mantive envolto pelos meus braços e passei a beijar o topo da sua cabeça. Após alguns segundos ele se recompôs e continuou:

- O que ninguém, além de você agora, sabe é que algumas semanas antes de você aparecer eu comecei a planejar o meu suicídio e eu o executaria justamente naquele dia em que eu te encontrei perdido na Floresta do Leste. O fato de ver alguém ali perdido me mobilizou de tal maneira, que momentaneamente esqueci o meu propósito e voltei a minha atenção para a possibilidade de poder te ajudar a sair dali, pois aquele lugar pode ser muito perigoso. Por isso eu sempre digo que você me salvou, pois desde aquele dia algo mudou no meu coração e eu comecei a sentir algo além de tristeza e raiva. Hoje eu sinto uma paixão muito mais intensa do que a que eu um dia senti pelo Estevão e, com certeza, eu não quero que a minha vida chegue a fim, pois eu quero estar com você.
- Bernardo...meu deus! eu...eu...eu nem sei o que pensar...

Eu estava extremamente agitado, pois somente a ideia de pensar que o Bernardo poderia tirar a própria vida me deixava aterrorizado, porém, concomitantemente, ele havia feito uma declaração de amor tão linda que eu queria beijá-lo. E foi o que eu fiz! Eu o puxei em direção ao meu peito, o abracei tão forte quanto os meus frágeis braços conseguiram e, em seguida, o beijei como se a qualquer momento o mundo fosse acabar. Depois eu, ainda o segurando em meus braços, disse:

- Nunca mais pense em uma besteira dessa! O que seria da sua família sem você aqui? o que seria desse lugar, na verdade? você é o coração de tudo aqui! você é tão querido! e o que seria de mim sem nunca ter te conhecido? Graças a Deus que eu me perdi ali!

Nós rimos depois que eu pronunciei a última frase, pois eu estava tão nervoso que já não estava prestando atenção ao que eu estava dizendo.

- O que seria da MINHA vida se eu não tivesse te encontrado? Essa é a verdadeira pergunta! Eu precisava te contar isso, porque eu quero que tenhas a consciência da importância que você tem pra mim, mas hoje em dia eu jamais pensaria nisso novamente!
- Onde você iria executar o seu plano?
- Mais adiante em relação ao ponto em que eu te encontrei na floresta há um lago muito profundo, sendo que eu não sei nadar. Então eu simplesmente andaria até lá e deixaria me corpo ser tragado pela água! Eu conheço a área, pois sempre costumava caçar lá quando mais jovem.
- Bem, graças a Deus tudo teve um final diferente do que você tinha planejado!
- Sim, pois hoje não há felicidade maior do que a que eu sinto ao teu lado! Às vezes eu penso que eu tive que passar por tudo isso, simplesmente porque seu eu não passasse talvez eu estivesse trabalhando no pasto enquanto você definhava na floresta.
- Então, me desculpe, mas que bom que você passou por isso!

Nós rimos novamente e permanecemos conversando durante alguns breves minutos antes de voltarmos à nossa jornada para o pasto. Bernardo apenas me pediu que não contasse a última parte da história à sua família, já que eles nunca chegaram a ter conhecimento dos seus planos suicidas e isso apenas traria problemas se fosse revelado. É claro que eu me comprometi a não contar. Então, seguimos em direção ao pasto, com os laços renovados e fortalecidos por mais uma lembrança do passado, porém, desta vez, não era do meu.

Um comentário:

  1. Ual. Sem palavras.Quanto mais lia meu coração palpitava mais forte

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