Depois de sair do pequeno povoado denominado Kai, fato que eu descobri no dia seguinte, nós seguimos viagem por mais três dias, sendo que, felizmente, encontramos outros povoados para passar as noites. Na tarde do terceiro dia de viagem desde Kai, nós avistamos o imponente castelo e o resto da cidade de Heliópolis que era protegida por uma imensa muralha. Apesar de ter nascido e crescido aqui eu estava impressionado, como se fosse a primeira vez que eu via o lugar. Bernardo e Manoel também parecia deslumbrados com a beleza da cidade.
Quando chegamos a um grande portão, os oficiais que nos acompanhavam solicitaram que ele fosse aberto e anunciaram que estavam voltando de uma missão de escolta do príncipe. Ao ouvirem isso, os outros oficiais pareciam surpresos e, quando adentramos a cidade, não pude deixar de notar que eles não paravam de me olhar e, provavelmente porque pensavam que eu não estava prestando atenção, cochichavam algumas coisas entre si, as quais eu não consegui distinguir, Eu os ignorei e continuei caminhando em direção ao castelo, que ficava na parte mais alta cidade, mas a cada passo eu senti uma sensação de aperto no abdômen crescia e o meu coração palpitava mais rápido: meu pai estava dentro daquele castelo, com a minha mãe doente.
Apesar do nervosismo eu continuei caminhando pelas ruas, tentando parecer o mais calmo possível, mas , como era de se esperar, Bernardo, que me enxergava além do que somente os olhos podem ver, se aproximou de mim e, com um sorriso muito terno no rosto, disse:
- Tudo vai dar certo!
- Eu sei...na verdade eu espero!
Nós continuamos caminhando em ascensão, até que chegamos à beira de uma cratera que, ao olhar mais atentamente, percebi ser um fosso circundando todo o castelo, o qual estava cheio de água, onde eu poderia jurar ter visto algo se movimentar. Mas não tive tempo de perceber mais coisas, visto que os oficiais nos convidaram a prosseguir sobre uma ponte de madeira que acabara de ser baixada.
O castelo de Heliópolis era, sem dúvida, muito grande. Percebi era constituído de blocos de pedra polida, o que lhe conferia ainda mais beleza sob a luz do sol, pois ele praticamente brilhava. A ponte sobre a qual havíamos atravessado o fosso já estava novamente suspensa e, junto com uma imensa muralha que também circundava o castelo e na qual haviam torres - certamente para arqueiros e outros oficiais se posicionarem durante um eventual ataque -, isolava a família real do resto da cidade, ou seja, somente entraria no local quem fora convidado. Bernardo também percebera essas coisa, de modo que comentou:
- Nossa Felipe! Este deve ser o local mais seguro que existe! Olha o tamanho dessa muralha....e aquele fosso lá fora!
- Realmente muito impressionantes!
Assenti à afirmação de Bernardo, mas além de impressionado eu também estava apreensivo, porque isso demonstrava o quanto Heliópolis era forte e, no caso de alguém contrariar o rei, o quão bem preparados eles estavam para uma batalha. Isso me afetou porque eu nunca fui a pessoa mais adepta aos preceitos do meu pai.
Alheio a estes pensamentos, Bernardo continuava caminhando com olhos atentos a tudo no pátio do castelo, o que me fez acalmar um pouco, pois ver ele tão feliz deixava meu coração mais leve. Desse modo, nós também adentramos o castelo e ficamos esperando no salão real, enquanto dois servos foram avisar à meu pai, o qual estava no quarto com a minha mãe, de que havíamos chegado. A espera fez reaparecer e aumentar o incômodo no abdômen, porém, isso foi amenizado quando algo bastante inesperado, pelo menos para mim, aconteceu: meu pai apareceu no salão, correu em minha direção com braços abertos e, antes que eu pudesse ter qualquer tipo de reação, ele me deu um forte, apertado e demorado abraço, ao final do qual ele disse:
- Meu filho! Que bom que você voltou!
- Ah...mas pai...eu suponho que não poderia ter voltado antes....
- Oh, está certo....aquilo...bem, conversaremos sobre isso mais tarde, agora você precisa ver a sua mãe imediatamente! Ela o aguarda ansiosamente e sentiu muito a sua falta durante estes meses em que você esteve fora!
- Estive fora...mas...
- Oh, não fique aí parado meu filho, siga-me até o aposento real!
- Espera pai! Eu...
- Sim...
- Bem...eu tenho que lhe apresentar algumas pessoas! Estes são Manoel e seu filho Bernardo...eles foram...meus anfitriões nestes meses em que estive...hum...em que estive fora!
- Ah, muito bem! Muito prazer em conhecê-los Manoel e Bernardo! Agradeço o que fizeram pelo meu filho! O Reino de Heliópolis tem uma grande dívida com vocês e com o vilarejo de Luminus!
- Muito prazer em conhecê-lo Vossa Majestade!
- Sim Vossa Majestade, estamos muito lisonjeados!
- Ora ora, eu lhes agradeço novamente e providenciarei para que vocês sejam bem recebidos em meu Castelo! William e Tomás, sua missão foi um sucesso! Meu filho está são e salvo em minha presença! Agora, levem estes dois sujeitos para um de nossos aposentos e comuniquem aos empregados para lhes fornecer comida, roupas e tudo mais que eles necessitarem, enquanto eu levo o meu filho para rever a mãe. Depois disso estão dispensados!
- Sim Senhor!
Os dois oficias disseram isso em uníssono e em posição de guarda, depois se retiraram acompanhando Manoel e Bernardo aos aposentos, reverenciando o meu pai e a mim. Naquele momento, eu percebi que eu nunca tinha perguntado os nomes dos dois oficiais, apesar de ter gostado do modo como eles trataram a mim e aos dois membros da minha nova família, então eu resolvi que depois iria lhes agradecer mais apropriadamente pelo que fizeram, pois, apesar deles sempre dizerem que estavam apenas fazendo o seu trabalho, eu podia sentir que eles tinham algum tipo de simpatia para conosco. Quanto a Bernardo e Manoel, eu fiquei apreensivo em deixá-los serem levados para longe de mim, mas quando estavam saindo, eu pude ver Bernardo movimentar a boca e formar as palavras: está tudo bem, o que me tranquilizou e me fez voltar a atenção para o meu pai, que dizia:
- Agora nós podemos ir, certo?
- Claro pai, vamos lá! Eu estou muito ansiosos para ver minha mãe!
Eu o segui até o seu quarto, no qual eu encontrei a minha mãe, que estava, aparentemente, muito debilitada. Ao lado dela estava um senhor, que aparentava ser ancião, com uma maleta cheia de remédios e uma expressão séria, apesar de tentar forçar um sorriso quando adentramos o quarto. O senhor me cumprimentou e, enquanto eu caminhei para falar com a minha mãe, o meu pai o levou para fora do quarto. Ao chegar próximo à cama os meus olhos começaram a ficar pesados e eu senti as lágrimas quentes escorrerem pelo meu rosto, mas eu as enxuguei e tentei ficar o mais centrado possível, quando eu sentei na beira da cama, segurei a mãe da minha mãe e disse:
- Oi mãe!
Quando ela me viu o seu rosto se iluminou e ela pareceu bem menos abatida do que quando eu a vi da porta do quarto. Então, com um tom de voz baixo e pesado ela respondeu:
- Olá meu filho...Graças a Deus nada lhe aconteceu! Eu sinto tanto pelo que aconteceu....
- Não se preocupe com isso mãe, o importante agora é você! O que aconteceu? O que a fez ficar assim?
- Eu estou não estou em meu melhore dias não é mesmo?
- Uma rainha como a senhora não perde a majestade tão fácil!
- Oh...não seja bobo meu filho! Eu estou definhando cada dia mais! O meu coração está fraco e o médico, aparentemente, não pode fazer nada para parar o processo! Por isso eu pedi a seu pai que o trouxesse de volta...eu quero o meu único filho ao meu lado até que chegue o fim dos meus dias!
- Ah, então eu posso ser perdoado por... a senhora sabe... o meu "erro"?
- Oh, por favor meu filho!Eu nunca me importei com isso e o seu pai também não deveria se importar! Mas não posso lhe tirar a autoridade, portanto não pude fazer nada por você naquela época, mas agora que, digamos assim, a situação é delicada, eu acho que ele teve que repensar!
- A senhora não se importa realmente?
- Veja bem meu filho...eu não lhe direi que essa é a melhor escolha para você, afinal, alguém da família real se relacionando com alguém do mesmo sexo é um escândalo! Mas eu penso que Deus é quem tem que se importar com essas coisas e se ele lhe concedeu este tipo de "natureza", digamos assim, eu não posso me opor a isso! Além do mais, agora isso já é um escândalo e não pode ser mudado! Portanto eu prefiro que você esteja a meu lado com as suas preferências, ao invés de estar desamparado ou até mesmo morto em algum lugar só porque nós não pudemos lidar com isso.
Eu não consegui mais conter as lágrimas e me inclinei sobre minha mãe para abraçá-la. Chorei copiosamente em seus braços, até que me ergui para olhar para ela e disse:
- Talvez, se eu tivesse lhe contado sobre isso antes, as coisas pudessem ser diferentes!
- Quem sabe meu filho! Mas Deus, muitas vezes, tem caminhos diferentes daqueles que nós imaginamos ou esperamos! Agora me conte, por onde você andou?
- Antes de lhe contar por onde estive, eu preciso lhe perguntar algo...
- Prossiga...
- O que a senhora diria se eu tivesse encontrado alguém...digamos...um futuro marido...alguém com quem eu tenho um relacionamento, melhor dizendo, durante esse tempo em que eu estive exilado?
- Você encontrou?
- Bem...acho que sim...sim...
- E você o ama?
- Muito!
- Nesse caso eu não posso dizer qualquer coisa! Como eu disse, esse não é o melhor caminho! Mas se tem uma coisa em que eu acredito desde pequena é amor! Acho que já lhe contei essa história, mas eu e seu pai éramos os primeiros nas linhas de sucessão de nossos próprios reinos, por isso nosso casamento não era o mais aconselhável, pois eram reinos poderosos e seria melhor que pudéssemos casar com príncipes e princesas de reinos menores, que não afetassem o processo de sucessão de seus reinos. Sabe o que nós dizemos?
- Vocês se casaram e criaram um novo reino chamado Heliópolis, que engloba as terras do seu reino, chamando Grindum, e as do antigo reino do meu pai, que se chamava...como era mesmo?
- Sumarim! Eu sempre achei um nome muito feio, então fiquei mais contente com o novo nome: Heliópolis! Mas veja bem, o nosso reino hoje é tão poderoso quanto os dois reinos eram antigamente e eu casei por amor a seu pai, o que é muito incomum em nossos dias, quando o casamento não é nada mais que um grande negócio para aumentar o poder dos reinos!
- Você realmente o ama muito não é mãe?!
- Muitíssimo meu filho! O meu lado da família, como você sabe, apesar de ter sido muito favorecido com a criação do novo reino, ainda tem pessoas que murmuram sobre o fato do seu pai ter se tornado o soberano, quando eu poderia ter sido a soberana do meu próprio reino...mas eu não me importo de ter abdicado dessa grandeza toda, além disso, como eu casei por amor, o seu pai me dá muita importância em todas as decisões referentes ao futuro de Heliópolis, diferentemente de muitos reis que tratam suas esposas como meros objetos de exposição! Mas enfim...o que eu queria ressaltar é: faça as suas escolhas por amor! Se você realmente ama esse rapaz que você encontrou durante o exílio, eu acho que deveria ficar com ele, porém...
- Ele veio comigo pra cá!
- Ele está aqui?!
- Sim, ele veio com o pai, me acompanhando na viagem até aqui...mas qual o problema?
- Como eu estava dizendo, porém, essa é uma das poucas coisas sobre as quais o seu pai nunca me ouve! Ele pode ter me escutado agora que estou doente, mas não acho que ele aprovaria tal união, então, se você realmente ama esse rapaz e quer o bem dele, sugiro que tenha calma e oculte essa relação por enquanto!
- Eu entendo...mas...
- O que foi? diga!
- Bem, eu estava pensando...já que você não é contrária a isso, se eu poderia lhe apresentar a ele...isso me faria muito feliz!
- Oh...bem...eu não estava esperando tal pedido, mas...sim, sim você pode trazê-lo aqui! Mas em outro momento, quando eu estiver em melhor estado!
- Tudo bem mãe! Eu espero até o dia em que você estiver se sentindo mais "apropriada"!
Depois disso, eu contei á minha mãe sobre o tempo em que eu estive em Luminus e sobre o modo como eu e Bernardo nos apaixonamos. Minha mãe parecia, genuinamente, encantada com a nossa relação e pareceu satisfeita e me ver feliz contando histórias sobre ele. Passado algum tempo, o meu pai adentrou o aposento, visivelmente, transtornado e bradando:
- Esse médico é um incompetente! Ele não sabe nada sobre medicina! Vou mandar expulsá-lo do meu reino e solicitar que os oficiais peçam a assistência de outro médico em um dos nossos reinos aliados!
- Calma querido! Não é preciso se exaltar e nem expulsar o médico do reino! Não é culpa dele que eu esteja tão doente!
- Tudo bem, eu não vou expulsá-lo. Mas eu insisto em solicitarmos um outros médico!
- Se isso vai lhe acalmar, então eu lhe apoio em sua decisão querido! Mas agora, vamos nos concentrar em nosso filho que voltou!
- Sim sim, uma grande notícia! Já estou providenciando tudo!
- Err...Tudo? Como assim?
- A sua cerimônia de nova titulação é claro! Eu preciso lhe conceder o título de Príncipe de Heliópolis novamente em uma cerimônia oficial! Já que eu...bem...lhe tire esse título perante todo o povo da cidade, eu preciso, naturalmente, devolvê-lo perante a multidão!
- Ah...sim, o título, claro...então eu serei príncipe novamente?
- É claro meu filho! Bem, você nunca deixou de ser na verdade, mas essa formalidade é necessária!
- Eu entendo...
- Que bom, então esteja o mais apresentável possível amanhã na cerimônia! Eu acho que a sua mãe precisa descansar e eu suponho que você também precise, depois de uma viagem tão longa, vindo de Luminus...então vamos deixar a sua mãe aqui descansando e eu vou te levar até o eu quarto!
- Tudo bem pai. Bom, até amanhã então mãe!
Eu beijei minha mãe na testa e acompanhei meu pai para fora do quarto. Ele me levou até o meu antigo quarto, que ficava imediatamente ao lado do deles, então me acompanhou para dentro do aposento e disse:
- A cerimônia vai ser às dez horas no pátio do castelo! As suas roupas foram recolocadas no seu antigo armário e a sua cama está como era antigamente! Tenha uma boa noite meu filho!
- Espera pai...e quanto aos meu amigos?
- Ah sim, eles foram colocados em quartos de hóspedes! Já se alimentaram, trocaram as vestes e agora estão em seus respectivos aposentos.
- Hum, bem...eu gostaria de vê-los...
- Naturalmente. Bem, eu vou pedir a Maria que lhe mostre os quartos...mais alguma coisa?
- Não pai, é só isso!
- Muito bem! Agora sim, boa noite!
Ele rapidamente se retirou do quarto e, alguns minutos depois, alguém bateu à porta. Quando eu verifiquei quem era, uma jovem com roupas simples disse:
- Boa noite senhor! O rei pediu que eu lhe mostre os quartos dos visitantes.
- Sim, por favor.
- É por aqui, siga-me...
A jovem me levou em direção ao quartos deles e passamos por vários aposentos, que eu não reconhecia, mas sabendo que o castelo era enorme, eu imaginei que realmente teríamos muitos aposentos disponíveis e alguns, inclusive, estavam vazios. Quando chegamos ela me disse, apontando para uma porta:
- Neste quarto está o senhor de idade e no próximo está o jovem rapaz que o acompanhava.
- Muito obrigado!
- Mais alguma coisa senhor?
- Bem, sim! Eu ainda não comi nada desde que cheguei, então apreciaria se você pudesse levar uma bandeja com comida para o meu quarto. Mas depois disso, está dispensada.
- Como queira senhor.
A jovem reverenciou e então partiu. Eu fiquei parado em frente ao quarto de Manoel, mas não quis perturba-lo, afinal eu queria mesmo era falar com Bernardo. Quando bati e entrei no quarto dele eu estava ansioso para contar o que havia ocorrido, então fui surpreendido por Bernardo, que me abraçou e me beijou. Porém, eu tive o impulso de afastá-lo e, depois de fechar a porta, disse:
- Preciso te contar algumas coisas!